Droga: o ponto, boca-de-fumo: a escola. Uma crônica perversa sobre avaliação

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Não sei bem se isso ocorre em muitos lugares, se ocorre em outros países ou outros estados, mas é o que vejo acontecer nas escolas públicas na periferia de Brasília. Tenho razões para acreditar que não deve ser uma realidade somente deste local, como sei também, que há lugares em que o aqui dito pode não se encaixar. Mais que descrever ou analisar uma realidade, o que quero mesmo é produzir um texto que possa fazer sentido para alguns professores e pessoas ligadas a educação. Não tenho pretensões a consensos, pelo contrário, tomara que os afetamentos provocados possam produzir novos fluxos do pensar a educação e suas coisas.

Do que quero falar? A sociedade não querendo ou não sabendo (não vou fazer juízos de valor) o que fazer com crianças e adolescentes, como ocupar o seu tempo, confinou estes em um local determinado, que costumamos chamar de escola. Para se manter um certo controle sobre as crianças e adolescentes, inventaram uma droga: a nota, e mais especificamente: pontos. Para distribuir esta droga foram treinadas pessoas, “atravessadores”, em cursos de magistério de nível médio e em cursos superiores. Lá onde se formaram estes atuais atravessadores da tal droga, eles aprenderam a chamá-la de avaliação (acho que foi lá, mas não tenho certeza). Não me pergunte de onde tiraram este nome, pois não há produção teórica crítica ou pós-crítica que ligue tão automaticamente estas duas coisas – avaliação e a distribuição desta droga chamada ponto. É este o nome da droga distribuída oficialmente nas escolas de norte a sul, de leste a oeste: PONTO.

Ela, geralmente, não só é distribuída legalmente como é incentivada. Observe que acompanhar a distribuição de pontos nas escolas parece mais importante que aquilo  que chamamos aprendizagem (ou outro nome mais bonito, dependendo da corrente epistemológica de quem analisa a função da escola). Escolas que pouco distribuem pontos são mal vistas em determinados gabinetes governamentais. Às vezes, os alunos não têm acesso a computadores e nem a internet nas escolas, mas as secretarias de muitas escolas possuem equipamentos modernos para registrar como vem sendo administrada esta droga do ponto. A cada dois meses os professores devem prestar contas da distribuição da droga. É gerado no computador ou de outra forma, um boletim de cada aluno revelando quem conseguiu consumir mais pontos. Faz-se até reunião com pais para distribuir estes boletins.

Como os atravessadores, “camelos”, como alguns os chamam em outras bocas, não receberam treinamento para conseguir outra forma de controlar as crianças e adolescentes, estes usam apenas a droga do ponto para ir controlando o comportamento dos iniciantes no consumo escolar do ponto.

A administração desta droga é baseada no mesmo princípio dos condicionamentos como numa Caixa de Skinner. Relação de estímulo-resposta. O que muda é que a caixa agora é a escola e em vez de ratos, temos alunos e alunas. Dá-se um ponto para que as crianças venham a escola, um ponto para que fiquem quietas, um ponto para que escrevam no caderno, um ponto para que façam as atividades de casa. A cada resposta positiva como se quer, uma premiação – o ponto. Há a crença de que o reforço – ponto – estimula comportamentos cada vez mais positivos.

Na verdade, trata-se de uma droga tão ou mais perigosa que outras, mas com um detalhe: esta destrói e constrói futuros coletivos quase que imperceptivelmente, pois opera sutil como um “elefante”. Não entendo muito de como é feita a distribuição em escolas particulares, mas nas escolas públicas que conheço é feita com uma tecnologia muito eficiente. Há uma série de mecanismos e tarefas para garantir tal distribuição. Alguns professores usam planilhas em computadores para calcular direito como fazer tal distribuição de droga. Alguns usam, ou talvez abusam até de uma coisa chamada avaliação formativa, que muitas vezes leva a distribuir a droga do ponto a qualquer sinal de adestramento perfeito. A droga age no cérebro e nas emoções dos ditos estudantes. Em poucos anos consegue-se que a criatividade, espontaneidade, interesse de muitas crianças e adolescentes diminuam significativamente. A droga faz a palavra conhecimento, aprendizagem, estudo, e outras similares gerarem urticária nos estudantes. A droga é forte. Eles passam somente a se mover no ambiente da escola em função da droga do ponto.

Para os atravessadores, também chamados de professores, este é um recurso ótimo. Como não conseguem prender a atenção dos alunos com nada, pois os assuntos que tratam com os alunos ou são distantes da vida destes, ou a metodologia não acompanha nada o que hoje pode parecer interessante na forma de apresentar qualquer assunto, ou também o assunto, digo conteúdo é mesmo inútil para a vida da grande maioria. Não sei as razões de quererem ensinar coisas inúteis, mas não vou entrar no mérito. Em função desta situação, a melhor arma para conseguir ter controle sobre as turmas é a droga do ponto. Nada como um pontinho. Alguns atravessadores são terríveis, dando pontos demais nas primeiras  atividades e fazendo alguns alunos terem overdose na primeira parte do ano, a tal ponto que já não conseguem fazer mais nada na disciplina na segunda

metade do ano. Outros são mais sofisticados e sabendo que, se devem de um lado evitar a overdose, devem também evitar a crise de abstinência que sofrem aqueles que ficam muito tempo sem consumir uns pontinhos. Assim organizam seus encontros com os alunos de modo a dar um pontinho aqui outro ali e vão assim conduzindo a situação.

Eu fico às vezes sem entender alguns atravessadores que de alto e bom som reclamam junto a outros professores que já não sabem o que fazer. Em reuniões entre atravessadores/professores para organizar como distribuir melhor a droga, que atividades que merecerão a droga e que atividades que não merecem mais nada, escuto volta e meia alguns atravessadores dizendo: “poxa, estes alunos não se mexem mais se não tiver ponto”, “não me ajudam em nada, não colaboram com nada e tudo o que peço para que façam, eles logo me perguntam: vale ponto?”. E a ladainha sobre o vício dos alunos continua. Outros atravessadores fazem coro a estas queixas. Eu fico cá com meus botões me perguntando: não foi tanto esforço para viciar estes meninos e meninas em pontos ao longo dos anos? Agora que eles estão totalmente dominados não deveríamos era comemorar? Alguns lançam desafios: “quero ver estes meninos e meninas fazerem alguma coisa sem valer ponto”. Desafio como este é fácil de fazer. Claro que o professor, digo, atravessador sabe que isso dificilmente acontecerá. Assim também como é muito difícil para estes atravessadores acostumados a comodamente encantarem seus alunos com os pontos, conseguirem motivá-los com alguma outra coisa.

Parecem existir situações em que por mais que se distribua a droga do ponto já não produz o mesmo efeito controlador de mentes e corpos. Volta e meia há convulsões individuais e coletivas. Há alguns que já nem se importam tanto com os pontos e nem ir para a escola desejam mais. A droga tomada já os incapacitou para mais coisas. Ou então pode ser que seus corpos sem que suas cabeças saibam, rejeitando e expelindo a droga consumida, procurem impedir a continuidade do vício. Como o vício não é adequadamente diagnosticado, fica-se perdido sobre o que fazer e até passa-se a usar outras drogas.

Veja bem que aqui não se quer condenar nenhum destes atravessadores, nem culpá-los por sua cumplicidade com este sistema que não sabe ou não quer fazer algo de interessante ou diferente na socialização das novas gerações. Eles também são vítimas. Muitos não sabem fazer outra coisa na vida e nem sabem se relacionar com os alunos sem a droga do ponto. Talvez alguns nunca foram formados para estabelecer outro tipo de relação. Parece que esta droga contamina quem está perto do mesmo jeito que contamina quem a consome. Há professores que irão enlouquecer se não tiverem pontos para distribuir. Até

alguns que não precisariam distribuir pontos, correm para fazer associações com outros e garantir uns pontinhos para distribuir. Parece que professor importante é o que tem pontos para oferecer. Também onde já viu viciado procurar e valorizar atravessador que não tem droga para distribuir? Temos que reconhecer que a estratégia do ponto é ótima, traz excelentes resultados em muitos momentos. Controla-se bem muitas turmas de estudantes. Talvez professores que gostariam de estabelecer outra forma de relacionar com os alunos, que não esteja mediada pela droga do ponto, sintam o peso dos donos das “bocas-de-fumo” obrigando-os a agir assim. Aos donos das bocas-de-fumo (quem seriam? Os governantes? As elites? O capital financeiro? Sei lá…) interessa e muito que a escola seja espaço de distribuição e consumo de pontos e não de outras coisas que possam fazer sentido na vida de estudantes.

A droga do ponto desestrutura até famílias. E estas não se dão conta disso. Os pais, irmãos mais novos e mais velhos, vizinhos e outros ficam dependentes dos pontos dos estudantes. Viciaram nos pontos dos outros. Em geral, perguntam aos estudantes sobre quantos pontos se ganhou (ou qual a nota tirou) e não o que foi que se aprendeu ou se o que se aprendeu é ou não significativo. Quanto mais pontos consumidos, ou melhor, ganhos, mais alegria nos sorrisos de todos. Se um estudante ganhou poucos pontos de modo que leve a uma reprovação, pode levar algumas famílias a brigas e crises internas e demoradas, mas se ganhou muitos pontos, a paz pode reinar, mesmo se aprendeu coisas inúteis para sua vida.

A droga do ponto cria dependentes em todos os lugares. Até as Secretarias de Educação e governos ficam viciados com o consumo de pontos dos alunos. Nos governos não interessa tanto as condições físicas e pedagógicas das escolas, dos professores, dos alunos. Interessa sim as estatísticas para saber se o número de pontos foi suficiente para aprovar percentuais cada vez maiores de alunos. Mas talvez seja chegada a hora de reconhecer que os pontos servem mesmo é para viciar em pontos e nada mais.

É verdade que este texto generaliza e muito. Se isto é um pecado, é assumido. É claro que tem alunos que aprendem e desenvolvem gosto pelo estudar “apesar” da escola como vemos hoje. É claro que há professores que não trabalham com esta lógica de distribuição da droga do ponto, mas provavelmente estão demitidos, ou estão escondidos. No mínimo, seus diários são iguais aos dos demais para disfarçar, pois o sistema não comporta outra forma que não seja o consumo da droga do ponto. Talvez estes professores nem possam se revelar. Vivem nas catacumbas das escolas.

Pedro Gontijo

9 respostas em “Droga: o ponto, boca-de-fumo: a escola. Uma crônica perversa sobre avaliação

  1. O grande desafio é estimular os alunos de forma criativa e conseguir que se interessem pelo estudo, e conteúdos. Bem longe das aulas tradicionais, e inflexíveis, devemos recriar a maneira de ensinar, para que a aprendizagem realmente aconteça, e a dedicação dos alunos não seja por pontos, mas por encantamento.

  2. Excelente essa reflexão, é possível e urgente traçar novas estratégias, para que os alunos sejam crianças ou adolescentes, tenham motivação pelos estudos e alcancem uma aprendizagem significativa, que não necessariamente sejam avaliados com uma pontuação que os desmotive e percam o interesse em aprender. As novas tecnologias estão aí para nos ajudar a criar novos mecanismos que ajudem nossos alunos a buscarem conhecimentos, de uma maneira mais lúdica e menos tradicional, respeitando as dificuldades e individualidades de cada um.

  3. Seu texto proporciona uma ótima reflexão, fazendo com que concordemos fielmente ao que está descrito! Estamos vivenciando um tempo em que os pais e até nós professores ficamos sentidos em não proporcionar oportunidades das crianças em ajudarem a receberem o “ponto” como se a realização ou o sucesso delas dependem exclusivamente dessa ajuda ou como quer que possamos nomear.

  4. Excelente reflexão. Este texto é “escancaradamente” a nossa vergonhosa realidade! Que triste me reconhecer, mesmo contra a minha vontade, como atravessadora dessa droga. E pior, não saber como mudar essa situação.

  5. Boa reflexão. o desafio é sempre buscar estratégias, maneiras de motivar, bem como inovar a aprendizagem com novas tecnologias e métodos mais atraentes, curiosos, lúdicos.

  6. A nota/ponto é herança da tendência tradicionalista, transmissão de conteúdos e checagem objetiva, desconsiderando o tempo de aprendizagem de cada estudante. Sobre como atender os alunos e como avaliá-los, ao longo da fase mais aguda da pandemia da COVID-19, a implementação do modelo de avaliação formativa tornou-se um instrumento positivo nesse processo e ajudou a quebrar as barreiras do ideário educacional pautado na atribuição de notas/pontos. Que passos firmes em direção a esse modelo avaliativo continuem sendo dados.

  7. Compreendo e concordo com a crítica do autor, pois o sistema de avaliação baseado em pontos, notas e avaliações frequentemente se torna mais importante do que a própria aprendizagem. É como se a obtenção de pontos fosse o fim em si mesmo, eclipsando a verdadeira finalidade da educação, que deveria ser o desenvolvimento integral do indivíduo, o estímulo à criatividade, à curiosidade e ao pensamento crítico.
    No contexto brasileiro, o sistema de avaliação nas escolas frequentemente está centrado em exames padronizados, como o Enem e o Saeb, que têm grande peso na avaliação de escolas e professores. Essa ênfase em avaliações pontuais muitas vezes resulta em uma abordagem de ensino voltada para a preparação desses exames, em detrimento de um aprendizado mais significativo e duradouro.
    As soluções propostas para problemas de avaliação no texto, como a organização de grupos de estudo, palestras, compartilhamento de cursos entre professores e busca de parcerias, são caminhos interessantes para repensar e aprimorar o processo de avaliação. Além disso, fortalecer a comunicação entre escola e família é crucial para que os familiares compreendam a importância de uma abordagem mais holística na educação de seus filhos.
    É fundamental que a discussão sobre o sistema de avaliação nas escolas brasileiras ganhe mais espaço e que se busquem alternativas que valorizem verdadeiramente o aprendizado, estimulando a autonomia dos alunos, promovendo o pensamento crítico e preparando-os para enfrentar os desafios do mundo real. A educação deve ser um processo libertador e transformador, não uma corrida incessante por pontos e notas.

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